O direito de sofrer
Descrição da imagem: pessoa vestida com trapos deitada na calçada. |
Segundo a psicanálise moderna, vivemos numa época em que a busca incessante pelo prazer é uma obrigação imposta pela sociedade a todos os sujeitos. Mas o que viemos falar aqui não é apenas de uma ótica estética dessa "proibição do sofrimento". Viemos falar da capacidade que as leis e o estado têm de ignorar a violação de direitos do sujeito tendo por argumento o "respeito a sua vontade".
Violação de direitos.
No aspecto "social", muitas vezes eu vejo o poder público deixar de fazer intervenções em certos casos tendo em vista preservar a autonomia e a vontade do sujeito. Mas há uma questão ética/filosófica muito complexa por trás disso.
Já vi muitas vezes as instituições fazerem manutenção de uma situação de violação de direitos por fazer o diagnóstico de que aquela é a opção do sujeito. Mas, se temos o direito a vida, também temos o direito à morte? Temos o direito de colocar a nós mesmos e a outros em risco?
Mas o grande problema é saber quando um sujeito acometido de várias condicionalidades que limitam seu arbítrio é capaz de invocar esse direito:
Afinal de contas, até quando o sujeito é capaz de responder por si mesmo?
Na minha carreira enquanto psicólogo social já vi muito mais pessoas morrerem do que eu desejaria ver. Ao contrário do que se pode pensar, sim, a falha na execução do nosso trabalho pode custar vidas.
Porém, até quando é capaz de responder por si mesma uma pessoa diagnosticada com transtornos relacionados ao abuso de substâncias psicoativas, ou até mesmo com psicoses tão graves que o fizeram, algumas vezes, romper vínculos familiares e morar na rua?
Tenho ciência de que este pensamento institucionalizado do sujeito pode abrir precedentes para um retorno ao terror manicomial que o Brasil vivia há algumas.
E inclusive, a filosofia existencialista prega através de seus vários pensadores que o fim de uma existência autêntica poderia ser, de modo simbólico, o suicídio. Mas ao invocar uma afirmação tão polêmica eu quero lembrar que qualquer psicólogo ou filósofo que comungue dessa linha de pensamento vai concordar que o sujeito precisa ter o mínimo de consciência para que tal tese seja defendida.
E eu enquanto técnico do SUAS, principalmente na minha experiência na proteção social de alta complexidade já vi muitos suicídios silenciosos e dolorosos.
As pessoas pensam que se matar é um ato violento e assustador, mas ele pode acontecer dia à dia, gota a gota, dose a dose. Até mesmo no ato de deixar de ir a um atendimento médico ou aderir a um tratamento.
Sendo que a ciência prova diariamente que transtornos psiquiátricos possuem, muitas vezes, base biológica.
Então, até onde o sujeito pode "escolher" sofrer? Até que ponto a felicidade é uma questão estética ou uma questão neurológica? Ser feliz significa ter saúde mental? É possível sofrer e ser mentalmente saudável?
Essas são questões as quais a resposta é extremamente complexa, mas que não devem deixar de ser discutidas antes que a rede de saúde ou de assistência social decida por encaminhar um caso a justiça ou mesmo deixar o sujeito "ser ele mesmo" independente de distúrbios mentais ou violações de direito.
É importante lembrar que, apesar de ao pensar assim estejamos abrindo portas para a violência institucional, devemos nos questionar a capacidade do sujeito de causar mal a si mesmo e ao outro, antes de nos apoiar de forma, muitas vezes conveniente, sobre sua vontade.
De qualquer forma esta é uma discussão sobre um saber individual que deve ser digerido no caso a caso, isso é, considerando a muitas vezes a ineficiência das instituições que compõem a rede e que não dão conta de prover um atendimento eficaz ao sujeito por razões que estão a revelia das mesmas.
Seria também ingênuo pensar nessa questão pressupondo um Estado Ideal.
Vivemos numa realidade em que há muitos municípios que não possuem as instituições necessárias para que se atenda o sujeito de forma adequada ou, quando existem, estão debilitadas pela falta de funcionários e outros recursos, ainda mais num período de crise.
Portanto, essa discussão é permeada de variáveis que atravessam a todo tempo o sujeito e sua história, principalmente no que tange a sua relação com os serviços que o atendem. Mas o profissional ético não pode deixar de pensar essas questões, por mais que a solução muitas vezes esteja completamente fora de seu alcance.
Afinal de contas, conhecer as limitações da sua atuação e da sua instituição faz parte do saber técnico necessário para atuar em casos tão complexos como estes.
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