A quem interessa a desigualdade social no Brasil de 2021?

Charge onde se vê um pai e um filho diante de um barraco em cima de um monte de lixo observando os prédios da cidade e o filho diz: "pai, eu quero morar naquele mundo!".


É de se estranhar que num país que viveu uma época de desenvolvimento tão pleno vejamos chegar ao poder um projeto político que abertamente prega a segregação e a manutenção de desigualdades.

Eu sei, estou fechando a porta desse texto logo no início para qualquer diálogo possível com quem discorda dessa afirmação. Porém ao longo dessa exposição vamos entender por que não vale a pena a gente tentar dourar a pílula pra explicar um processo tão amplo, complexo e perverso.

[ALTERADO EM 19/01/2020] Esse texto virou um vídeo, se você quiser ver está disponível abaixo:


O primeiro item a se constatar é que é fato que a coisa tem piorado no nosso país. Basta folhear um bom jornal, ligar a TV ou a internet que vamos perceber que insumos básicos vêm encarecendo vertiginosamente no Brasil. E aqui falamos de coisas das mais essenciais como alimentação, gás de cozinha, aluguel e outros. E isso acontece no momento em que a pobreza vem aumentando no Brasil da mesma forma. 

Não é em vão que, como em muitos anos não ouvíamos, já se fala de fome nesse país.

E aquelas pessoas pra quem eu fechei a porta no início do texto vão poder alegar que os governos atuais pegaram o país, o estado ou a cidade quebrados, e que estamos numa pandemia. Não estamos negando aqui que a pandemia tenha afetado a economia e a vida do cidadão no geral, isso seria absurdo. Mas é importante ter em vista que medidas poderiam ter sido tomadas para evitar que a escala desses problemas chegasse a esse patamar.

Isso é, se realmente evitar o sofrimento do pobre fosse objetivo desses governos.

Minha tese aqui é que a desigualdade social não é apenas uma consequência de diversos fatores complexos e uma grande crise global. É fato que o que acontece num país de dimensões continentais como o Brasil nunca é simples, e apontar vilões é uma armadilha. Mas aqui queremos acusar que existe sim um projeto de manutenção da desigualdade social, e um dos maiores indícios desse crime é a motivação para ele.

A sociedade brasileira foi erguida sobre a segregação. Então porque agora seria diferente?

Nós temos um país que escravizou milhões de pessoas e que ainda hoje tem marcas profundas desse processo em suas relações de poder. A escravidão do corpo negro que desumaniza não pode ser simplesmente apagada da história. Não é em vão que vemos essa mesma relação social se repetir nas estruturas da cidade, onde quando é preto e pobre geralmente é favelado e sem recurso, e onde é branco e minimamente abastado já se tem uma condição de vida melhor, algumas vezes mesmo na pobreza.

Muitas pessoas ainda nascem e são criadas sobre uma cultura que prega a diferença, e uma diferença do pior tipo possível: aquela que não se pode falar sobre.

O sistema social colonial deixa marcas em qualquer sociedade. A necessidade de se referenciar a uma capital do outro lado do oceano de onde supostamente emana a “civilização” e portanto toda sua cultura e conhecimento cria na minha visão a primeira relação social hierarquizada. O colono responde e obedece a um sistema maior, idealizado e impositivo e vê tudo à sua volta como desvalorizado ou no mínimo dependente daquilo que emana da capital.

Libertar-se do pensamento colonial não é fácil, e é um processo que demanda muita energia psíquica e até física. Porém no Brasil geralmente acompanhamos na história um processo não de descolonização, mas sim da mera troca de mãos desse poder autoritário.

E essa relação autoritária parece fazer parte do senso de nação do brasileiro, que sempre parece estar procurando um senhor para quem responder, um senhor que geralmente está coberto pela sombra desta capital idealizada do outro lado do mar, uma sombra europeia.

Mas o que o racismo estrutural tem a ver com a desigualdade social promovida pelos governos atuais?

Eu venho de uma família que fugiu do campo, e não são raras às vezes que vejo minhas tias e minha mãe se lembrarem do orgulho que certas famílias tinham de manter suas empregadas domésticas - que muitas das vezes atuavam em regime semi escravo. Algumas dessas famílias mantinham gerações de empregadas domésticas sob seu comando, reforçando a ideia do engessamento da mobilidade social, ou seja, a manutenção de uma sociedade onde quem nasce rico morre rico e quem nasce pobre morre pobre.

Talvez a nostalgia da ditadura que ajudou a eleger Bolsonaro seja um reflexo da nostalgia dessa falta de mobilidade social que era mantida por uma desigualdade tão grande que fazia na cabeça do negro e pobre ser razoável trabalhar em troca de comida e alguns trocados eventuais.

Tanto na ditadura quanto, infelizmente, em 2018 vimos um clamor da sociedade pela manutenção da autoridade que mantinha “cada um no seu lugar”. Mudar a ordem da sociedade e abalar a hierarquia social é uma visão que causa pavor em quem detém o poder no nosso país. Isso porque, geralmente, aqueles que detém o poder ainda são os herdeiros do poder colonial que era mantido por essa sombra da capital além mar.

Sim, o poder no Brasil não é solidificado pela meritocracia como pregam os neoliberais, mas sim por uma hierarquia que remonta a colônia.

Não é em vão que se juntam aos órfãos da ditadura os monarquistas, os religiosos ultraconservadores e toda uma corja que vê na manutenção da hierarquia social a manutenção da própria situação de privilégio.

Então, somados aos enganados e aos ignorantes, são esses que sorriem por dentro quando se escuta falar do aumento dos preços de insumos básicos como aluguel, gás e comida; que não conseguem conter a alegria quando escutam falar do fim de benefícios para os pobres e outros. 

Mas dentre esses perversos, ressalto, ainda há os enganados.

Pasmem: existe gente tão pobre e tão miserável que vê apenas na proximidade do poder uma oportunidade a qual se agarrar. Aqueles que são assalariados, mas que vêem com alegria o enriquecimento do patrão na esperança de que nesse banquete alguma migalha caia da mesa, ou então que haja a oportunidade de se fartar nas sobras… Coisa que raramente acontece.

Essa esperança tão falsa quanto a de um bilhete de loteria, que reforça o comportamento do oprimido de, como já dizia Paulo Freire, achar que pode se tornar o opressor.

O sofrimento do Brasileiro não é então consequência apenas de Bolsonaro e de seus clones. Eles apenas atraem para si todo ódio e a deformação contida na sociedade de uma república que insiste em agir como colônia. Depor Bolsonaro e seus súditos não vai resolver o problema, apesar de ser um belo e esperançoso começo, o que nosso país precisa é assumir protagonismo de sua própria história, e mudar essa cultura perversa que lhe foi imposta.

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