Quem pode ser mulher?

Foto: Boxeadora Argelina Imane Khelif fazendo um pose com o braço direito levantado. Ela usa tranças e está vestindo uniforme vermelho.

Parece que a questão da boxeadora da Argélia Imane Khelif fez o mundo discutir gênero em um nível mais elevado de complexidade desde que eu acompanho essa coisa de gênero e sexualidade com mais atenção.

Muito se discute sobre papel de gênero, que é sobre qual a performance esperada de uma pessoa que se identifica como mulher e quais são os marcadores existentes em seu corpo que “carimbariam” essa identificação como autêntica.

Se a gente fosse se ater a questão técnica dentro do esporte este vídeo do biólogo, professor e divulgador científico Átila Iamarino seria um bom ponto de partida:

 

Digo isso porque, na minha experiência de rede social, os principais perfis fazendo essa discussão (ou agressão) a Khelif eram perfis vinculados à dita "extrema direita" que, apesar da gente poder discutir o que é e quem é de "extrema direita", eu entendo que seja o campo político ideológico que, neste momento histórico, visa disputar a conservação do conceito de gênero como o que já está estabelecido há milênios… Ou pelo menos, tentam sustentar o mito de que isso é verdade.

Eu não sei no que você, pessoa que lê, acredita, mas se você acredita em ciências como história, antropologia e outras, está mais que posto que a questão do gênero nunca foi fixa, mas isso não significa que o assunto seja simples.

Eu usei a palavra “performance” ali no começo do texto porque quando a gente fala de “papéis sociais” em psicologia a gente pensa justamente nessa representação como a de uma pessoa que atua no palco da vida que interpreta um personagem de si mesma baseado nas expectativas que a sociedade tem dela. Como uma pessoa que atua mesmo, como no teatro.

Imagine, por exemplo, uma pessoa que trabalha na área de medicina. A maioria das pessoas têm na sua mente um conjunto de características que seriam obrigatórias em suas cabeças sobre como deve se vestir e comportar uma pessoa que fez medicina e a exerce como profissão. Porém, na vida real, fora das nossas mentes e de nossos universos imaginários, pessoas que praticam a medicina como meio de vida são apenas pessoas, e pessoas são diferentes entre si, ou seja, diversas. Nem sempre "médico" é um homem branco de meia idade que veste jaleco branco e anda com um estetoscópio no pescoço.

Até mesmo a medicina enquanto profissão é diversa. Há pessoas que são médicas, que são professores, que são cirurgiões, peritos, clínicos, pesquisadores. Há pessoas que são trabalhadoras da medicina que são negras, brancas, mulheres, homens, que se identificam com outros gêneros. Que têm nacionalidades diferentes, falam línguas diferentes e portanto exercem um conjunto de gestos, posições corporais, jeitos de falar que podem variar quase que infinitamente.

Pensar numa profissão específica como medicina é algo bem delimitado, mas ainda assim complexo. Imagine então ao se tratar então de algo tão basal, tão genérico quanto o gênero? Pensar nos papéis sociais de um gênero a partir de todas as possibilidades de corpos e culturas em todas as suas possibilidades é impossível.

No entanto, no campo ideológico da extrema direita (que é um termo complexo, já disse) há um farol, um norte para o assunto: uma suposta biologia. Para essas pessoas, o gênero é um aspecto biológico da pessoa. Ele é definido pela anatomia do corpo do sujeito. E, se a gente não tem um conhecimento dentro de ciências humanas para instrumentalizar esse pensamento, gênero é até algo bem simples e pode-se facilmente classificar gênero de forma binária, ou seja, dividir as pessoas entre aquelas que nasceram com pênis e aquelas que nasceram com vagina.

Pronto, problema resolvido. Próxima questão? Não. As olimpíadas estão esfregando na cara da gente que não.

Eu odeio essa coisa da gente ficar dissecando corpos por aí, ainda mais em público. Acho muito corajoso quando as pessoas vêm falar de seus corpos de forma aberta, mas não é esse o caso de Khelif, pelo menos não no que estou vendo até o momento.

Mas o caso dela ajuda a entender que, talvez (e apenas talvez), esse campo ideológico esteja flexionando seus conceitos, o que é um fenômeno interessante já que o conservadorismo, muitas vezes, é sobre simplificar conceitos complexos, não o contrário.

Se Khelif nasceu com o aparelho genital feminino ela é mulher. O assunto deveria estar resolvido aí dentro do conceito ideológico conservador. No entanto, não é simples assim. Isso porque no conservadorismo parece se mesclar a biologia com o comportamento. Não é só a presença da vagina que define quem é mulher, há também a forma esperada de um corpo, a forma como esse corpo é vestido e a forma como ele se comporta

E, nada disso é determinado exclusivamente de forma biológica.

E no caso do que está acontecendo nas olimpíadas, há a agora no discurso do conservadorismo a genética.

Khelif seria uma mulher XY. Eu não sou biólogo, assista o vídeo do Átila que eu coloquei ali em cima se quiser entender isso. Mas ela é "geneticamente homem" (há debates sobre isso), mas desenvolveu um corpo de mulher. Isso significa que ela tem mais testosterona que uma mulher que é XX mesmo tendo nascido com o aparelho genital feminino. Exceto pela questão genética, ela tem e sempre teve um corpo de mulher desde que nasceu.

Como o Átila falou ali, sim, há muita discussão sobre isso. Porque mulheres XY possuem mais testosterona e a testosterona é o hormônio responsável pela força que um corpo pode ter. E aí muita gente pode chegar nessa parte do texto e achar que eu estou validando os argumentos da direita sobre esse caso.

Primeiro que os argumentos que esses políticos e influenciadores (com os quais eu esbarro) estão usando não embasam uma discussão, mas sim uma espécie de linchamento online contra pessoas diversas e minorizadas, promovendo discursos de ódio que podem até se transformar em atos de violência.

Mas sabe o que é legal? Ao levar a discussão pro campo genético, os caras tão abrindo margem para dizer que gênero não é um assunto simples! (até porque não é mesmo)!

Vamos recordar o que eu falei lá em cima. Para o conservadorismo (muitas vezes), “menino veste azul e menina veste rosa”, mesmo que isso nem sempre tenha sido verdade na história. Mas essas pessoas falam de um ponto de vista onde haveria um “determinismo biológico” para o comportamento.

Sim, há as questões hormonais do corpo e outros atributos fisiológicos que influenciam o comportamento, mas nós somos seres sociais e culturais também. A gente se comporta para além daquilo que é “natural”, ou esperado para nossos corpos.

Nossos corpos não foram feitos para voar, por exemplo. Mas voamos. Nossos corpos não foram feitos para respirar debaixo d’água, mas respiramos. Talvez isso seja argumento para pensar que nem tudo que a gente faz é determinado pela fisiologia e que talvez….

… e apenas talvez o que a gente pensa ser um homem ou ser uma mulher seja (também) algo socialmente construído, algo combinado, um papel, uma performance como aquele ator que citei ali no começo interpretando uma personagem.

Faz sentido, não faz?

E sabe o que é interessante? Nada disso é novo em ciência. Isso porque não são só as ciências humanas que estudam esse tipo de coisa. A própria genética mostra que o gênero não é algo binário, estabelecido num texto talhado em pedra, mas sim algo diverso que tem milhares de nuances e complicações como é o caso das mulheres que nascem com vaginas, mas têm o código genético não esperado para esse tipo de corpo.

Então é interessante sim que se pense os aspectos técnicos da competição olímpica sobre igualdade de corpos que competem, mas será que a discussão que está sendo feita na nas redes sociais é sobre isso? Ou é sobre uma dominação política de pensamentos, uma dominação sobre quais papéis podem ser ocupados por quais corpos?

O assunto não é simples e eu quero saber o que você acha também. Deixe um comentário!

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