Sou analfabeto, graças a Deus

Semana passada eu ouvi um senhor trazer essa frase: "sou analfabeto, graças a Deus". Eu não consegui entender o contexto de sua frase. Imaginei que devido ao "graças a Deus" ele fosse cristão ou algo do tipo e já ouvi uma pregação que diz que temos de agradecer a Deus por tudo, até pelo sofrimento. Mas seu tom de voz não parecia ir nesse sentido, ele falava com orgulho.

Seja você de direita ou de esquerda, você vai concordar que estamos em crise e que algo precisa ser mudado. Precisamos de reformas estruturais em nossa sociedade. Nesse aspecto, ficou comum se opor a sociedade, está na moda mostrar-se como diferente, inadequado.

Essa graça que esse senhor deu talvez tenha sido nesse contexto, de ser feliz por não ser instruído dentro daquilo que a gente chama de "letramento", seja ideológico, seja mesmo da letra no papel. Muitas famílias, como a minha, vieram do campo. Meus avós, tanto maternos quanto paternos, só aprenderam a ler de fato quase na terceira idade.

Meus avós tinham orgulho de dizer que foram alfabetizados. Minha avó materna aprendeu a ler justamente pra poder ler a bíblia a qual teria lido pelo menos três vezes. Talvez ela tenha alcançado assim um contato direto com o testamento de sua fé e não precisava mais dependender dos olhos dos outros para enxergar a Palavra.

Mas pense bem, não é só ignorância ter orgulho do anafalbetismo.

Pessoas que lidam com a terra, o que era o caso desse senhor analfabeto, apesar de não conhecerem muito sobre o mundo, estão em contato direto com a realidade próxima a eles. Uma realidade dura, porém tangível, talvez até mesmo inquestionável. Uma realidade que está ao alcance das mãos.

Ainda mais num mundo onde até mesmo nossas relações humanas têm se tornado cada vez mais virtuais, um mundo onde o comportamento das pessoas é regido por abstrações de abstrações, talvez seja bom mesmo estar ciente do mundo material a sua volta.

Muitas pessoas, principalmente as pobres, talvez vivam num raio de 50km de onde nasceram. E lá vão morrer. Portanto, de que adianta se preocupar com um tsunami no Japão, ou as eleições americanas? Parece até coisa de doido se importar com uma guerra que acontece do outro lado do oceano quando você produz boa parte da sua comida, quando seu trabalho depende apenas das suas próprias mãos.

É uma ilusão reconfortante, não é?

E eu já vi pessoas bem instruídas podenderarem sobre essa possibilidade: a de se alienar e viver dos próprios braços. De não depender do resto da sociedade para existir. Eu chamo isso de ilusão porque, de fato, é isso. No mundo globalizado é impossível viver de forma isolada, dependendo de si mesmo.

Sim, a guerra do outro lado do oceano pode afetar nossas vidas, bem como o tsunami no Japão. Isso porque quanto vale o nosso trabalho, quanto nosso salário pode comprar, não é um número escrito em pedra, mas sim o resultado de uma gigantesca fórmula que leva em conta a política internacional, resultados diversos da economia, quem comprou e vendeu esse mês, taxa de juros...

Há alimentos que compramos no mercado que percorrem milhares de quilômetros para chegar até as prateleiras. Alimentos que, apesar de parecerem frescos nas baias de frutas, estão disponíveis o ano todo porque foram congelados, e vieram de caminhão por milhares de quilômetros, pois não são produzidos aqui.

Mesmo que você consiga montar o ecossistema completamente autônomo, produzindo sua energia elétrica, comida e tratando a própria água, o que, convenhamos, já seria algo insano, ainda assim, conflitos sociais podem chegar até você. Uma grande indústria pode poluir a água da nascente que você usa, ou até mesmo a água do subsolo, a derrubada das matas a volta do seu terreno, e muitos, muitos outros fatores podem interferir nessa vida idílica com a qual você sonha.

Mas aí você pode pensar, ao ser "anafalbeto, graças a Deus" pelo menos sua saúde mental vai ser melhor. Menos coisas pra se estressar, afinal redes sociais estão fazendo cada vez mais mal do que bem... Mas tá aí mais uma ilusão.

Esse senhor, como muitas outras pessoas com as quais convivo diáriamente, tinha um telefone na mão. Muitas pessoas que não são analfabetas, mas as vezes têm problemas para enxergar, usam o WhatsApp através de audios, e são atingidas pelos vídeos que são compartilhados. Algumas talvez nem tenham mais tevê em casa, mas são informadas através de grupos de vizinhos, amigos. Talvez um grupo de bairro, ou de uma cidade pequena...

Analfabeto, sim. Mas talvez não desconectado, não desinformado. E aí talvez esse orgulho de ser analfabeto não vá de encontro a uma humildade, uma vida simples, mas sim uma posiçao política. Afinal de contas, tudo é política.

Vejo muitos movimentos conservadores, de direita que seguindo a cartilha do autoritarismo pregam esse culto a simplicidade, "ao homem do campo", como se o conhecimento acadêmico fosse algo promíscuo e o trabalho no campo fosse algo virtuoso. Como se a solução para a crise do contemporâneo fosse um retorno a uma era moral mais rígida.

Receitas para uma sociedade ideal já são suspeitas, pois o número de variáveis presentes na realidade é quase infinita sendo quase impossível prever o comportamento de massa, no entanto, quando pegamos ainda uma receita datada, que vem do passado, será que não aumentamos a chance de errar?

Eu sigo sendo a favor de um mundo onde uma pessoa possa ter orgulho de sua trajetória, ou até mesmo ser "analfabeta, graças a deus", mas desde que tenha a liberdade de ser assim e, também, a liberdade de não ser assim caso mude de ideia. Será que somos analfabetos graças a deus ou analfabetos graças a opressão, graças a ideologias excludentes, graças a violência física, psicológica e até mesmo cultural?

Quem sou eu pra dizer? Eu fui ideológicamente alfabetizado, estou preso dentro das grades dos livros, das ameaçadoras páginas da instrução formal - aquela que dá forma, delimitando o pensamento. Mas graças a Deus tenho consciência disso. Meu maior medo é ser tão ignorante que não consiga identificar as paredes da minha própria prisão.

 

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