A origem da palavra "tempo".

Descrição da imagem: uma ilustração gerada por IA onde temos um homem feito de engrenagens.

Estou em processo de concluir meu novo livro, um romance intitulado "A Palavra-Humana" e decidi trazer pra vocês um capítulo dessa história para apreciação da "Pessoa-Que-Lê" (você vai entender melhor isso quando o livro for publicado).

Neste meu novo romance acompanhamos João Apóstolo, um jovem negro, periférico, estudante de literatura que é um escritor frustrado com uma vida amargurada. Além disso ele acaba de receber o diagnóstico de depressão esquizóide, que seu pai recém descoberto morreu e que ele não tem mais condições de bancar a faculdade. Desolado e com pensamentos suicidas, é então que ele descobre através de um mendigo que é o persongem de um livro e que este mendigo é o avatar da Palavra-Humana, uma entidade cósmica que seria guardiã da poesia no mundo. Este sujeito em situação de rua então lhe faz uma proposta irrecusável: se tornar o novo avatar dessa entidade cósmica e assumir seus poderes.

Ao se tornar o avatar da Palavra-Humana, nosso protagonista recebe o poder nada modesto de alterar a realidade através da linguagem e a primeira coisa que faz com isso é se tornar "o maior escritor do universo". Mas aí ele descobre que o uso desses poderes de forma indisciplinada e, principalmente, egoísta, pode alterar as estruturas da realidade onde ele vive, invocando aberrações literárias que ameaçam a poesia, a força que une este universo.

Recheado de metaficção, crítica social, referências a filosofia e a psicanálise, esse texto brinca com o papel da arte na nossa sociedade, com a hierarquia social levantando questões como "quem pode ser artista?", além de questionar o papel da linguagem na nossa percepção de realidade e na construção da mesma.

Nesta história o uso irresponsável dos poderes da palavra por parte de João causará disputas com criaturas que chamamos aqui de "aberrações literárias", antagonistas do nosso universo. Um deles é o Senhor do Tempo, ou "O Relojoeiro Louco", uma entidade que personifica o significado da palavra "tempo". logo abaixo você vai poder ler o capítulo que descreve a origem dessa entidade:

A Palavra-Humana

Capítulo 26: "Uma Breve História do Tempo".

Houve uma época em que o tempo não podia ser contado como hoje. Uma época em que todas as medidas sobre ele eram, de fato, relativas, mas não uma relatividade geral, mas sim uma imensurável. Esse tempo, por conveniência narrativa, chamaremos de “tempo ancestral”.

Uma mulher uma vez se levantou em seu abrigo na floresta e não conseguiu mais dormir. Olhou para os deuses que brilham nos céus, que já eram deuses pois a Palavra já existia. Olhar para os céus, para os deuses que brilhavam, era a única forma de saber o momento certo, o momento em que os deuses manifestavam sua vontade de que algo ocorresse. Mas o céu estava sombrio, e ela não reconheceu as estrelas, não sabia qual era o momento certo do sol nascer, se deveria tentar dormir novamente, ou aguardar a luz.

Tremia, seu coração palpitava querendo saltar de seu peito apertado. E percebeu uma estrela brilhante surgir no horizonte. Aquela deusa anunciava o nascimento do sol, aprendeu depois de algumas noites de terror e explicou isso para seus amantes, para seus filhos, para os sábios. E todos a chamavam de feiticeira, o que na época era bom.

Não só as estrelas, deuses do céu, determinavam o momento certo das coisas. Os deuses da terra e as folhas também diziam qual era a época de caçar, também a época em que as árvores davam os frutos mais gostosos e nutritivos. Mas o humor dos deuses era sempre incerto, imprevisível. E as pessoas tinham que viver suas vidas dependendo do desejo dos deuses, e não do seu próprio. E por um tempo, isso foi até bom.

Isso porque as pessoas não morriam naquela época, pois não havia a passagem do tempo, essa palavra ainda não existia. Um dia, um dos filhos da mulher foi atacado por uma fera e parou de se mexer. Isso era um evento comum, um acaso. As pessoas não morriam por causa disso, ou deixam de existir. Se tornavam estrelas, deuses ou ancestrais.

Um dia encontrou com um andarilho de olhos verdes que sorriu para ela, e depois de fazerem amor, ele contou pra ela como as palavras eram inventadas: assim como coisas novas podem virar novas palavras, novas palavras podem criar coisas novas. Mal sabia ela que aquele homem de olhos verdes era o deus dos deuses, a própria Palavra-Humana encarnada que, naquela época, no tempo ancestral, zanzava pelo mundo brincando com os humanos porque os considerava seus iguais, pois eles a haviam criado. Ah, claro, ele também se divertia muito perseguindo as viúvas da era de Lorem Ipsum.

Um pecado cruel foi o que a Palavra tinha cometido, pois ao ser amada por aquela mulher que tinha medo da noite, deu a luz ao primeiro personagem narrador consciente da humanidade. De posse do poder da poesia, aquela mulher percebeu que poderia controlar a vida e a realidade se dividisse a existência em pequenos pedaços, pedaços que se dividiam infinitamente e tornavam a realidade e a vida uma coisa constante e controlável. A arte de medir e controlar esses pedaços que se seguiam, a mulher chamou de tempo.

Com o controle da palavra tempo, a mulher ensinou as pessoas de quem se considerava mãe que havia o momento certo das coisas. Havia o momento em que as presas da caça se reproduziam, havia o momento em que as flores surgiam, o momento em que as mulheres, se conhecessem homens, engravidavam. E a vida passou a ser controlada, um pedaço de cada vez.

Pararam então de zanzar pela savana. Podiam residir em qualquer lugar, pois controlavam a realidade através dos momentos certos. Poderiam comer a qualquer época do ano, pois podiam prever a escassez, assim como o nascimento de novas criaturas, ou desabrochar dos frutos e grãos. Não estavam mais tão à mercê dos deuses do céu e da terra.

A mulher se tornou ela mesma uma deusa encarnada. Todos os humanos falantes procuravam sua sabedoria, não só os sapiens. E todos eles acabaram caindo na armadilha daquela nova criança que ela tinha parido, o tempo. Uma criança estranha que ela não lembrava muito bem do dia em que amou. Uma criança que brincava com areia, com as sombras e luzes. E um dia, a criança questionou por que aquela mulher vivia por centenas de gerações enquanto as outras pessoas desapareciam.

As pessoas perceberam que a mulher já estava viva quando o último mamute lanoso se deitou, quando as geleiras ainda estavam altas no norte, ou quando os animais do norte rumaram para o sul procurando calor e estranharam. Ali, então, perceberam que a mulher que era mãe de todos não podia mais existir, pois sua existência desafiava o poder de seu próprio filho, o tempo. E para resolver aquele paradoxo imperfeito, inventaram uma outra palavra chamada morte, que afligiu a mulher, a mãe de todos, a que colecionava milênios.

O tempo, filho da mulher, sorriu. Pois não precisava mais prestar contas para ninguém. E viveu mais que sua mãe, pois agora todos acreditavam nele e em seus poderes.

Mas o reinado do tempo não foi automático. No princípio, foi necessária uma catequese para que as pessoas pudessem entender a ordem da passagem desses pequenos pedaços de vida. Porém, as festas que aconteciam nas colheitas, com uma fartura nunca antes vista por aquelas pessoas, eram argumento convincente de que dividir a vida em pedaços era mais vantajoso que aguardar o desejo dos deuses que, mesquinhos, nunca liberavam a fartura, mas apenas as quantidades que mal dava para se sobreviver.

Mas a morte, Pessoa-Que-Lê, acabou por se tornar uma parasita do tempo. Se tornou sua consequência. Ainda assim, as pessoas preferiram conviver com ela diante da alternativa de abrir mão dos privilégios que poder do tempo fornecia. Choravam a morte de seus parentes, que agora não se tornavam mais deuses, mas sim placas que marcavam covas no chão, ou viajantes de um reino misterioso, um reino estrangeiro e inalcançável. E os deuses acabaram se afastando mais e mais daquelas pessoas, pois elas não precisavam mais deles, afinal, as próprias pessoas controlavam a realidade através de seu rei, o tempo.

Com o apoio do tempo, a mudança foi tão grande que surgiram pessoas que chefiavam pessoas. Geralmente homens, que tomavam conta de espaços de terra e contavam as cabeças de seus governados. Ao invés de mães, as pessoas agora passaram a ter reis.

Muita gente pensa que foi a Palavra quem inventou a escrita. Mas não, foram os reis. Os reis precisavam registar suas posses, seus reinos imaginários que eram medidos a palmo no mundo real. E quando a escrita foi inventada, o tempo ficou ainda mais forte. Ele então começou a instituir totens para sua adoração, pois queria dominar todo o mundo, todas as almas.

E quando as aldeias começaram a se esconder atrás de muros, com a tecnologia da escrita o tempo influenciou os pensadores a inventarem papiros mágicos chamados de calendários. Agora não somente o tempo de plantar e colher era medido, mas era possível determinar quando aconteceria, e quantos aconteceram antes. Com a linguagem da matemática inventada pelo povo de Kemet, foi possível, inclusive, determinar eventos divinos, como a passagem de cometas ou o tamanho da própria circunferência da terra.

Mas foi milhares de anos depois que o tempo começou a atingir sua glória máxima. No alto dos templos, o totem maior do controle da vida, que era dividida em pequenas partes, se criou. Pois o filho da mulher se tornou um relojoeiro, inventando o amuleto mágico que fazia com que o comportamento de várias pessoas fosse controlado ao mesmo instante, independente de onde elas estivessem.

A primeira coisa em que pensou para esse amuleto mágico foi o círculo. Através do círculo que era uma forma inventada pelos magos mateméticos (pois eram de Kemet), ele podia descrever processos que se repetiam infinitamente. Depois ele precisava de um símbolo fálico, algo que apontasse seu alvo e determinasse o desejo, daí surgiu o ponteiro. Também da matemática ele tirou a medida que servia para contar o quanto de vida poderia ser gasto em cada movimento daqueles falos. Surgiu então o totem maior da adoração do senhor do tempo, o relógio.

Veja bem, Pessoa-Que-Lê, o tempo podia controlar pequenas tribos, ou reinos. Mas agora, com a invenção desse totem, que era o Relógio que foi se tornando cada vez menor e portátil, o Tempo pôde perceber que ele poderia controlar toda a humanidade na circunferência da Terra de uma vez só através dos círculos descritos por seu ponteiro.

A princípio, os relógios eram grandes monumentos totêmicos no alto de templos, geralmente igrejas, que anunciavam o tempo para as pessoas. Naquela época, os homens não eram tão bons e contar a vida dividida em pedaços e seus calendários e relógios precisam ser constantemente corrigidos conforme se provavam errados ou conforme a conveniência dos tiranos, e o tempo permitia dividir o seu poder naquela época.

Se a mãe do tempo ainda estivesse viva, se ele não a tivesse matado com seu próprio poder, ela estaria decepcionada. Pois as mães querem a vida, querem o florescer de seus filhos. Reis tiranos querem controle e com a invenção do tempo e da matemática, seu poder aumentou mais ainda.

Veja bem, Pessoa-Que-Lê. Com a contagem das coisas, era mais possível prever eventos da vida como a recém inventada morte. O triste era saber que naquela época, ninguém mais lembrava que a morte tinha sido inventada. Quando os súditos do tempo inventavam palavras novas eles não diziam que essas palavras eram inventadas, mas sim que eram “descobertas”, o que tornava a fé nelas ainda maior.

Foi assim que com o tempo a tecnocracia foi assumindo o lugar da fé nos deuses do céu e da terra e o próprio tempo foi esquecido enquanto entidade divina ou antropomórfica, se tornando uma lei, uma propriedade do universo.

Hoje, cada segundo da sua vida, Pessoa-Que-Lê, é contado porque a mulher amou a Palavra e deu a luz ao tempo, que se tornou um deus, que matou sua mãe e que deu seu poder aos reis que controlam a humanidade. Hoje esses reis têm vários nomes, se chamam de bilionários, de presidentes, de ditadores, mas continuam usando a crença no tempo, na medida da vida, para controlar a existência. Pois abriram mão da magia, da poesia, dos deuses, para viver sob uma tecnocracia.

João contemplou toda essa história diante do Relojoeiro Louco e percebeu que seu poder era ínfimo diante dele. A Palavra-Humana era a única forma de desfazer o significado do tempo e evitar a significância da morte.Mas a palavra humana estava perdida no fim do universo, presa no Paradoxo Imperfeito, portanto, João não podia se transformar. Mas como em tudo na sociedade Brasileira, não será João, mas sim uma mulher preta que teria o poder de restaurar a Palavra-Humana de volta a essa narrativa. Porque mulheres pretas são mais fortes que deuses e entidades cósmicas quando a conveniência racista assim o quer. E quando falamos português e escrevemos usando sua lógica, a gente acaba sofrendo sequelas do racismo também, mesmo que sem querer.

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