Apologia a Tolkien
Senhor dos Anéis foi uma dessas coisas. Lembro que havia um rebuliço entre os nerds acerca de um filme que ia sair, que era baseado em um livro clássico de fantasia. Minha única experiência com histórias de fantasia medieval para além de Harry Potter era no videogame e, muitas vezes, era atravessada pelo filtro nipônico. Eu começava a descobrir o que era RPG, tinha visto um livro de Dungeons and Dragons 3.5 que um conhecido tinha exibido como se fosse o brinquedo mais caro da loja. E aí alguém me disse que era bom ler Tolkien se eu gostava de fantasia, sobretudo, porque eu gostava de escrever.
E aí fui eu, um adolescente, mergulhar nas pesadas páginas de O Senhor dos Anéis, procurando por aventuras que rimassem com aqueles jogos de videogame e ainda com o Heavy Metal, estilo de rock que eu também tinha acabado de descobrir, sobretudo pela influência de Fairy Tale, música do André Matos que virou tema de novela, e fui ler o tal do Tolkien.
Tive ainda outro privilégio, o de ler a obra antes dos filmes, mesmo que já houvesse o burburinho sobre a peça cinematográfica circulando. Me lembro de ir no cinema com alguns amigos assistir um filme aleatório só pra ver o trailer de anúncio de o Senhor dos Anéis, aquele clássico que já dizia que seriam três filmes e que anunciavam as datas dos lançamentos. E embarquei naquela aventura.
O sentimento que restou pra mim dessa leitura jovem era de uma história que começava inocente, como numa infância. As festas dos Hobbits, os bosques do condado, tudo isso me lembra hoje o meu bairro da periferia. A história depois vai ficando sombria, principalmente depois da ponte de Kazad-Dûm, trecho esse do livro que explodiu minha cabeça ao revelar a origem do mapa Kazoordoon do game Tibia.
A história tem esse ar de tranquilidade que começa com os Hobbits remetendo a uma infância, mas há ali em Kazad Dum um peso, um amadurecimento onde as coisas ficam mais graves. Daí vem o trecho que eu mais me recordo até hoje que é o confronto de Gandalf com o Balrog. No filme essa cena também ficou muito épica, mas puxando a sardinha para mais próximo do meu braseiro que é a literatura, eu digo que o texto tem um poder que nenhuma mídia tem nesse momento: o de nos fazer sentir o que aqueles personagens estão sentindo.
É nessa cena que Tolkien usa uma linguagem poética pra transmitir o pavor que seria estar diante do Balrog, mesmo sendo um mago que nesse universo é uma entidade praticamente divina. E ele constroi esse trecho que pra mim é um dos mais belos da literatura de fantasia:
O balrog não fez sinal de resposta. O fogo nele pareceu se extinguir, mas a escuridão aumentou. Avançou devagar para a ponte, e de repente saltou a uma enorme altura, e suas asas se abriram de parede a parede, mas ainda se podia ver Gandalf, brilhando na escuridão; parecia pequeno, e totalmente sozinho: uma figura cinzenta e curvada, como uma árvore encolhida perante o início de uma tempestade.
Saindo da sombra, uma espada vermelha surgiu, em chamas.
Glamdring emanou um brilho branco em resposta.
Houve um estrondo e um golpe de fogo branco. O balrog caiu para trás e sua espada voou, partindo-se em muitos pedaços que se derreteram. O mago se desequilibrou na ponte, deu um passo para trás e mais uma vez ficou parado.
– Você não pode passar! - disse ele.
Coloquei o trecho todo por razões de contexto até pra você também poder lembrar da cena do filme, mas pra mim o que soa mais poético é o seguinte: "ainda se podia ver Gandalf, brilhando na escuridão; parecia pequeno, e totalmente sozinho: uma figura cinzenta e curvada como uma árvore encolhida perante o início de uma tempestade". Eu disse que a literatura tem super-poderes, mas, geralmente, é difícil que uma cena de ação cinematográfica seja superada por uma narrativa literária. Já me peguei, muitas vezes, tendo que parar a leitura para imaginar uma cena de ação, porque cenas de ação muitas vezes são descritas de forma mecânica. Muitos autores ficam preocupados em descrever trajetórias feitas por lâminas de espadas, ou a posição onde os personagens se encontram no campo de batalha, ou a cor de suas armaduras.
Mas não, literatura não é sobre isso. É, como eu disse, sobre se sentir sob a pele daquele personagem.
Quando você lê Senhor dos Anéis você sabe que Gandalf é antigo, sabe que ele é poderoso, mas ele não é onipotente e você gosta dele porque ele é descrito como um velho amigo dos Hobbits. E ele está lá, naquela ponte sobre o abismo enfrentando um mal ancestral, algo muito maior do que qualquer Hobbit poderia conceber mesmo além de suas colinas bucólicas. Mas há uma coisa que um Hobbit sabe o que é: a natureza. Eles vivem em buracos na terra, eles plantam a própria comida, eles vivemo e morrem no mesmo território. E um Hobbit com certeza sabe o que é uma tempestadade.
Quando ele diz que o mago é como uma árvore velha diante de uma tempestade você, leitor, que é colocado no lugar de um Hobbit, sabe exatamente o quão assustadora essa cena é. Perceba: Tolkien não descreveu quantos metros tinha o Balrog, ou o movimento de sua espada flamejante, ele não descreveu a força da magia de Gandalf, mas com um trecho simples de poesia ele te coloca sob a pele do mago.
O livro tem outras partes semelhantes. O talento de Tolkien é dar uma vida muito tangível, imagináriamente falando, ao seu universo. É consenso de que o protagonista das obras de Tolkien nunca foram os elfos, nem os Hobbits, ou mesmo as pessoas humanas, mas sim a Terra-Média, aquele universo antigo, cansado, que por vezes parece ser uma grande ruína, ou seja, o que restou de um lugar que um dia fora importante e belo, mas que foi esquecido. Um gigante morto, como na mitologia nórdica, quando Odin e outros deuses usaram o corpo de Ymir para criar o mundo.
Nesse mundo se dá a jornada dos nossos personagens que vagam por esses lugares quase sepulcrais tentando salvar o pouco que restou.
E foi isso que restou também pra mim, um homem que já caminha para a meia idade, de sua leitura de O Senhor dos Anéis realizada em sua juventude. Por isso, após ser atingido por uma propaganda que rememora os 70 anos da obra, eu me vi tentado a ler de novo com esse novo filtro que vem de um outro lugar da vida.
Relendo os diversos prefácios da minha edição de 2001, vi um Tolkien apologético, quase que pedindo desculpas por tudo que você vai ler. Como se sua literatura fosse antiquada, estranha, da natureza daquilo que é estrangeiro e, de fato, ela não deixa de ser principalmente para nós. Nessa edição ele fica insistindo em seus textos introdutórios que sua obra não se trata de uma analogia a segunda ou a primeira guerra mundial, lembrando que a obra foi primeiro publicada em 54 quando os horrores do conflito mundial ainda estavam sendo suturados nas mentes das pessoas que o viveram.
Essa dupla negativa de Tolkien me faz pensar que ela se torna uma afirmação, afinal, Tolkien lutou na primeira guerra, chegando alguns biógrafos a dizer que ele pode ter estado nos mesmos campos de batalha que Hitler (que estava do lado oposto). Ele viveu esse período histórico e como pode um autor ter a petulância de dizer que o espírito de seu tempo não influenciou na sua obra?
E então, quando entramos na história, sou confrontado com essa linguagem poética de Tolkien. Sobre essa coisa que ele consegue transmitir em seu texto que é como voltar pra sua casa da infância, pra mesma rua, pro mesmo bairro e ver que nada mudou. Confesso que fiquei empolgado com essa re-leitura, pois O Senhor dos Anéis é o pai da fantasia moderna. E mesmo como todas as críticas ao eurocentrismo da fantasia é inegável que este gênero influencia politicamente todo um braço da literatura moderna.
Não dá só pra, simplesmente, cancelar Tolkien e ignorar que tudo que foi escrito depois dele tem sua influência, desde as histórias de super-heróis mais idiotas até epoéias modernas como os afrofuturismos carregados de política, de realidade e, porque não, de propostas de mundos novos a serem de fato construídos?
Talvez em 2024 possamos encontrar em Tolkien um testamento da hegemonia européia podendo assim, de fato, enterra-la com as devidas cerimônias que são necessárias, construído sobre sua sepultura algo maravilhoso, algo que possa falar dos tempos atuais e nos ajudar a imaginar mundos novos, mas sem botar fogo nos espólios do morto, mas sim guardando toda riqueza que ele contruiu onde se deve: no museu, deixando as escrivaninhas dos artististas livres para roubar o que quiserem, mas determinados a construir algo novo e não louvar as ruínas de um reino esquecido.
Estou ainda nos primeiros capítulos da obra e a leitura já me rendeu tudo isso, talvez eu volte aqui pra falar mais sobre essa segunda experiência de leitura, uma experiência que apesar de ser uma segunda vez, não se repete porque vem de um outro lugar da vida, que vem depois de muitos livros lidos. Mas hoje é o que tenho pra dizer.
Concordo plenamente. Como um fã de quase qualquer coisa que tenha fascismo espacial: Não da pra mudar o que foi escrito e tentar apagar isso faz só com que a sociedade não aprenda, não avance. - É aquela coisa que o professor de história diz no Fund II "Entender os erros do passado para não repetir no futuro" - Devemos dar a chance dos artistas e do povo seguirem interpretando a construindo essas obras.
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