Um breve tratado sobre meta ficção
Imagem gerada por IA ilustrando Dom Quixote. |
Em comemoração ao lançamento do meu livro "A Palavra-Humana" no próximo dia 12/12 estaremos realizando uma série de postagens falando sobre o livro e os temas ao qual ele se refere. E é necessário debulhar os conceitos do livro que, tenho que admitir, podem ser um pouco complexos para o leitor comum, pois bebemos de águas profundas como a filosofia e a psicanálise bem como a literatura clássica para escrever essa obra. E não poderíamos deixar de passar pelo estudo do próprio gênero antes de falar da obra.
Destaco ainda que não sou acadêmico de literatura, apenas gosto de pesquisar sobre ela porque sou escritor. É interessante que se você quer se aprofundar no assunto visite os grande teóricos, pois posso estar tentando cobrir um campo que já foi explorado, apesar de, a princípio, não ter encontrado referências sobre o que vou falar aqui
Nota importante: parte da pesquisa para esse texto foi feita utilizando ChatGPT4o. Alguns parágrafos também foram revisados com o auxílio dessa ferramenta. No entanto, todos os prompts utilizados exigiram fontes que foram verificadas antes de serem inseridas no texto e referências foram creditadas no fim de cada seção na forma de links.
1. Quabrando as paredes!
Acredito que uma das formas mais fáceis de demonstrar o que é meta ficção é pensar em personagens que conversam com a plateia no teatro ou no cinema. Apesar de ser um conceito que tomamos emprestado do teatro e de ser apenas uma das muitas formas de fazer meta ficção, ainda assim podemos pensar a quebra da quarta parede como um exercício para pensar meta ficção dentro da literatura.
Para entender melhor esse exemplo precisamos entender um estilo de cena no teatro que se chama "Caixa Italiana" ou "caixa cênica italiana" ou ainda "Palco Italiano" onde, de forma bem simplificada, temos um cenário que tem duas paredes laterais, que as vezes podem estar ocultas do público e uma parede de fundo que está sempre visível. Se imaginarmos um cenário como, por exemplo, um quarto, podemos pensar que o público se encontra atrás da quarta parede, invisível aos personagens.
Porém, quando um personagem têm consciência de que está numa cena de teatro ele é capaz de falar com o público, quebrando assim a quarta parede. Um exemplo bem recente disso pode ser visto no cinema com a série de filmes do super-herói Deadpool onde o protagonista por vezes olha para a câmera e conversa direto com a audiência ou quando ele demonstra em alguns diálogos saber que está num universo cinematográfico de quadrinhos, inclusive, fazendo referência a outros filmes, no entanto, eu considero que, de forma rigorosa, a "quebra" da quarta parede só acontece quando o personagem fala direto com o público. (Escola de Teatro, Casa Ditalia).
Então a meta ficção é uma história ou narrativa literária onde os personagens e aquele universo em si têm consciência de que aquela história é uma ficção. Mas quais são os tipos de personagens que podem existir nessa história? Como é a estrutura de um universo meta ficcional e como ele funciona? Esse é o desafio que aceitei aqui, descrever isso a partir da minha experiência enquanto escritor e da minha pesquisa.
2. Transcendência dos personagens.
O que é um personagem?
A teoria literária define personagem como alguém que está subordinado a ação, uma entidade fictícia que incorpora em si o enredo facilitando a identificação com a Pessoa-Que-Lê (leitor, leitora ou leitore). Há vários tipos de personagem, como por exemplo (infoescola):
- Protagonistas, cuja experiência é o foco da narrativa.
- Antagonistas, que se opõem ao protagonista.
- Personagens secundários, que apoiam a trama principal
- Figurantes, que preenchem o mundo.
E por aí vai. Há ainda variações. E. M. Forster em Aspects of the Novel acrescenta ainda que há personagens "planos" e "redondos", sendo os primeiros personagens rasos, simples e os segundos, os redondos, personagens mais complexos, ou seja, multidimensionados.
Os tipos pesonagens meta ficcionais:
Aqui estamos propondo uma subcategorização desses personagens presumindo então, conforme o exemplo da quebra da quarta parede, que existem dois tipos de consciência de um personagem meta ficcional, a consciência imanente e a consciência transcendental.
Uma Consciência Imanente é uma consciência implícita do próprio universo literário onde o personagem existe. Esse tipo de personagem meta ficcional é bem mais comum. Um personagem com consciência imanente geralmente pode saber que é um personagem, mas talvez não saiba que seu mundo é uma ficção. No entanto, ele pode ter uma experiência com uma representação holográfica do seu mundo, conceito que explicaremos mais a frente, mas que podemos ter como exemplo quando o personagem tem acesso ao livro do qual é personagem. Um exemplo de um personagem com consciência imanente é Dom Quixote.
Uma Consciência Transcendente é uma consciência que está num estágio superior a da imanente. Este personagem, além de ter consciência dos universo em que ele vive, sabe que é um personagem que sabe que seu mundo, em comparação ao mundo da Pessoa-Que-Lê, não é real, sendo uma projeção artísitca do mesmo. Personagens com Consciência Transcedente podem quebrar a quarta parede, interagindo direto com o leitor e podem até mesmo usar essa consciência para subverter as regras da própria realidade em que vive noc aso de metaficções mais profundas (que explicaremos também mais tarde). Um exemplo de personagem com consciência transcendente é o Deadpool.
3. Tipos de universos meta ficcionais.
Na minha visão enquanto autor, uma história meta ficional presume alguma espécie de consciência do universo em que se vive, mas também presume uma possibilidade de transcendência. Portanto, propomos 2 tipos de universos meta ficcionais os transcendentais e os auto-referentes. Também precisamos considerar o conceito de Realidade.
A Realidade é universo onde o leitor se insere, mas ele não é a realidade em si, mas sim a realidade percebida pela Pessoa-Que-Lê atravessada pelo espírito do tempo em que aquele escritor criou a obra. Então, muitas vezes, essa realidade é, na verdade, um espelho da visão do autor sobre o mundo. Um exemplo disso é quando você, que provavelmente é Brasileiro e vive nos anos 20 do século XXI lê uma história de Dostoiéviski, um russo que viveu no fim do século XIX. Portanto, para um personagem de Dostoéviski que é lido por você a Realidade é a experiência do autor interpretada por você.
Os Universos Transcendentais são aqueles que estão contidos dentro da Realidade, mas que não são herméticos, ou seja, eles não são fechados. De alguma forma a Realidade vaza para dentro deles permitindo a existência de personagens transcendentes. Um exemplo de Universo Transcendental e o da Animação Rick and Morty onde, em poucas cenas, o protagonista Rick sabe que é um personagem de desenho animado e que seu mundo é uma ficção.
Por fim, os Universos Auto-Referentes são universos herméticos (ou seja, fechados, selados em si mesmos) que contém a si mesmos dentro de si. Um exemplo disso é como quando um personagem tem acesso ao mesmo livro que estamos lendo, ou seja, o livro do qual ele é personagem. No entanto, assim como na teoria dos conjuntos da matemática, o fato daquele universo conter a si mesmo pode gerar paradoxos.
Um desses paradoxos pode ser pensado como numa cena em que o personagem lê livro do qual ele é personagem na exata cena onde estamos lendo. Ele enxerga a si mesmo em sua imaginação? Como essa cena pode ser descrita pelo autor? Outro paradoxo possível é quando o personagem lê uma cena que ainda não aconteceu. Ele toma consciência do futuro? O texto será alterado? Eu brinco um pouco com esses paradoxos no meu livro A Palavra-Humana.
Por isso, é interessante que universos Auto-Referentes sejam caricaturas do real, ou seja, histórias que exageram os traços da realidade da Pessoa-Que-Lê . Outro modo de evitar paradoxos é quando a história é do gênero fantasia ou ficção científica.
Conceito de Holografia.
Importante destacar que, quando o livro em que a Pessoa-Que-Lê existe dentro do texto, esse texto dentro do texto pode ser entendido como uma holografia, conceito que eu estou propodo agora. Inspirada no conceito físico de princípio holográfico (utilizado para explicar a conservação da informação na borda de um buraco negro), a holografia literária é uma representação condensada do todo (como em citações ou referências), encapsulando o universo narrativo dentro de si mesmo em uma forma reduzida. Não estamos falando de hologramas da ficção científica, mas de um recurso literário que reflete a essência do texto em partes específicas, sem replicá-lo integralmente.
Um exemplo físico pode ajudar: imagine um cubo tridimensional desenhado em uma folha de papel. Embora o desenho tenha apenas duas dimensões (altura e largura), ele é capaz de representar as três dimensões do cubo original (altura, largura e profundidade). De forma semelhante, a holografia literária condensa o universo narrativo em uma versão menor, mantendo sua completude.
Teóricos literários poderiam comparar a holografia ao conceito de mise en abyme, no qual uma história contém outra que reflete ou reproduz a narrativa principal. Um exemplo clássico é a peça dentro da peça em Hamlet, que reflete os eventos do enredo maior. No entanto, enquanto o mise en abyme funciona como um reflexo ou comentário, a holografia apresenta literalmente o universo narrativo dentro de si, muitas vezes gerando paradoxos estruturais.
Um exemplo claro de mise en abyme é Dom Quixote, onde personagens na segunda parte reconhecem Dom Quixote como o herói da primeira. Segundo Foucault: 'O texto de Cervantes se dobra sobre si mesmo, se enterra na sua própria espessura e torna-se para si objeto de sua própria narrativa.' (1Library.org). No entanto, diferentemente da holografia, aqui não há condensação dimensional. O mise en abyme é uma duplicação reflexiva, enquanto a holografia é uma condensação dimensional que carrega o todo em um fragmento. Portanto, Dom Quixote exemplifica bem mise en abyme, mas não necessariamente holografia.
Finalmente, o espelhamento, como em O Espelho de Machado de Assis, é outro conceito que pode gerar confusão. O espelhamento envolve a repetição ou duplicação de elementos narrativos para gerar reflexão ou oposição, enquanto a holografia condensa o todo em partes específicas, alterando a lógica narrativa. Em meu livro A Palavra-Humana, a holografia aparece em citações e referências ao próprio universo narrativo, sem nunca replicar o texto integralmente."
4. Formas e/ou intensidades de meta ficção.
Eu considero que podemos classificar a meta ficção em formas e intensidades. As formas são os meios pelos quais aquela narrativa se insere na realidade da Pessoa-Que-Lê. As intensidades são os níveis de liberdade que aquela narrativa (ou personagem) têm dentro daquele universo devido a sua consciência.
No entanto, não é recomendável passar por uma categorização desse nível sem antes nos depararmos com autores como os teóricos Gérard Genette e Julia Kristeva que são figuras centrais nos estudos literários, cada um oferecendo ferramentas teóricas para a análise de textos. Suas abordagens podem fornecer embasamento para categorizar as intensidades da metaficção.
Genette propôs uma metodologia para dissecar a narrativa em seus componentes fundamentais, permitindo uma compreensão de sua estrutura ou forma. Ele identificou cinco categorias principais para essa análise:
Ordem: Refere-se à sequência dos eventos na narrativa em relação à sua cronologia real. Isso inclui técnicas como analepses (flashbacks) e prolepses (antecipações), que reordenam a apresentação dos acontecimentos.
Duração: Analisa a velocidade com que os eventos são narrados, considerando o tempo que os acontecimentos ocupam na história versus o tempo dedicado a eles na narrativa. Por exemplo, um evento que ocorre ao longo de anos pode ser resumido em poucas linhas, enquanto um momento breve pode ser detalhado extensivamente.
Frequência: Examina a relação entre o número de vezes que um evento ocorre na história e o número de vezes que é narrado. Um evento único pode ser narrado múltiplas vezes de diferentes perspectivas, ou eventos repetidos podem ser narrados uma única vez.
Modo: Diz respeito ao "como" da narrativa, ou seja, o grau de informação fornecido ao leitor e a perspectiva adotada. Isso abrange a focalização, que pode ser interna (perspectiva de um personagem), externa (observador externo) ou zero (narrador onisciente).
Voz: Concentra-se em "quem" narra a história e de que posição. Distingue entre narradores heterodiegéticos (não participam da história) e homodiegéticos (participam da história), além de considerar o nível narrativo em que operam.
Já Kristeva introduziu o conceito de intertextualidade, que postula que todo texto é um mosaico de citações e referências a outros textos. Segundo ela, a produção textual é um processo de absorção e transformação de outros textos, indicando que a escrita é sempre uma reescrita.
Essa perspectiva destaca que nenhum texto é completamente original; todos dialogam com obras anteriores, seja por meio de alusões, paródias, pastiches ou outras formas de referência. A intertextualidade revela a natureza dialógica da literatura, onde cada obra se insere em uma rede de textos que se influenciam mutuamente.
Aplicação às Intensidades da Metaficção
Ao categorizar as intensidades da metaficção como "rasas", "medianas" e "profundas", é possível utilizar as ferramentas de Genette e Kristeva para fundamentar essas distinções:
Metaficção Rasa: Pode ser analisada em termos de "voz" e "modo" de Genette, identificando narradores que fazem leves referências à sua própria ficcionalidade sem romper significativamente a ilusão narrativa.
Metaficção Mediana: Envolve uma intertextualidade mais explícita, onde o texto reconhece e dialoga com outras obras ou com sua própria construção de maneira mais evidente, mas ainda mantendo uma estrutura narrativa coesa.
Metaficção Profunda: Aqui, a narrativa pode apresentar uma complexa rede de intertextualidades e manipulações estruturais, como mudanças na "ordem", "duração" e "frequência" dos eventos, desafiando as convenções narrativas tradicionais e a percepção do leitor.
Dessa forma, as teorias de Genette e Kristeva fornecem uma base sólida para compreender e justificar as diferentes intensidades de metaficção, permitindo uma análise mais estruturada e teoricamente embasada.
Conclusão:
Para mim, a meta ficção é uma forma de transcender a literatura promovendo a Pessoa-Que-Lê uma auto crítica e, principalmente, a crítica da realidade a sua volta, causando no mesmo um deslocamento de si e da sua realidade. A meta ficção é ainda um estilo de escrita desafiador, pois obriga o autor a se deparar com paradoxos e impossibilidades narrativas que não existem em ficções convencionais. Ou seja, o desafio ideal para escritores e pessoas que estão cansadas de uma literatura de fácil digestão.
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