Ter pra ser

Tenho percebido que muitos objetos perdem não só sua função, mas seu significado, seu simbolismo. Um tênis não é mais um objeto que calça os pés, que protege. Ele dá valor a um sujeito, o valor de quem pratica esportes, ou de quem trabalha em certos espaços, ou vive em certos espaços, mesmo que isso não seja verdade e este sinal seja um falso sinal.

Um relógio não mede mais as horas, ele significa algo mais, ele é uma joia, é uma experiência de um outro tempo, principalmente quando é mecânico. É uma escolha estética, uma experiência, não mais um instrumento.

Não estamos falando aqui de funcionalismos, de só servir para funcionar, mas de entender a que serve o simbolismo que esse objeto carrega. Humanos, enquanto coletivo, enquanto sociedade, têm esse atravessamento pelo simbólico. A linguagem distorce nossa experiência com a realidade, nos constitui, mas não nos serve. Assim, podemos chamar um tanto de madeira cortada e reorganizada de "cadeira" dizer que que aquilo serve para sentar.  Uma cadeira também pode representar um sujeito ausente, uma falta de alguém que deveria estar ali, pode representar ainda uma época, uma história e por aí vai. O objeto ocupa um lugar na rede simbólica como rastro do desejo, revelando a falta que o move, nunca a preenchendo. Mas quando a gente vive numa sociedade que objetos nos "dão significados" (falando de forma poética aqui), esse talvez seja um problema. Marx já teorizou sobre o fetichismo da mercadoria (em O Capital), onde o valor do objeto transcende sua utilidade prática, sendo socialmente construído, mas no capitalismo tardio, a fetichização se intensifica: os objetos não só escondem relações sociais, mas nos interpelam como sujeitos-consumidores (Althusser), fabricando identidades.

Mas lembremos que, o fetichismo da mercadoria, como Marx descreve, e o gozo, como Lacan teoriza, revelam como os objetos prometem uma completude que nunca entregam.

Os significados dos objetos são dados pelo Outro (a linguagem, a cultura), que nos atravessa e nos define, mesmo quando imaginamos ser nós os autores. No entanto, hoje em dia, para você ser (dizer que é) "descolado", uma pessoa VIP, você tem que ter um iPhone. Um telefone que, num país o salário mínimo é 1,5 mil reais ele pode chegar a custar 15 mil. As pessoas precisam carregar objetos que signifiquem dinheiro, status, poder para que elas, de fato, sejam essas coisas. Agreguem esses valores em si próprios.

De forma poética, na nossa sociedade, no capitalismo tardio, talvez estejamos deixando os objetos nos nomearem, dizerem que somos, não o contrário, deixando o neo liberalismo definir nossa função.

E se falháramos nessa função? Se, por exemplo, você está triste e não pode trabalhar. Seus problemas acabaram, está logo ali na farmácia um remédio que é a compra da felicidade, assim como é um tratamento, uma fórmula mágica, uma filosofia que, ao ser adquirida te nomeia como feliz. A ideia de "comprar felicidade" remete à crítica de Freud ao mal-estar na cultura (a busca de satisfação é sempre parcial), mas não devemos reduzir a medicalização da tristeza a uma mera transação!

Se temos a obrigação de sermos felizes, talvez tenhamos então essa obrigação de comprar esses adendos nominais, significantes vazios que nos colam a identidades de consumo, que nos definem para que sejamos funcionais e assim, ter para enfim ser.

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